quinta-feira, 31 de julho de 2014

Armadura

Os músculos do corpo humano podem ser comparados a uma armadura, que reflete a personalidade de cada indivíduo. Crianças que cresceram em ambientes violentos acabam carregando a própria fisionomia com traços de medo e de agressividade. Não conseguem sorrir com espontaneidade, mantém a cara sempre fechada e de poucos amigos. O corpo todo se torna rígido, menos harmônico em seus movimentos: o olhar, a fala, os gestos se ressentem dessa rigidez. Os músculos formam uma espécie de couraça, que pode, também, ser chamada de armadura (defesa) do caráter. Cada um desenvolve sua própria armadura de acordo com suas tendências, uns são mais prontos a se defenderem através de agressões, outros desenvolvem mecanismos de fuga ou de retraimento.

Por outro lado, aqueles que se obrigam a sempre agradar aos outros, mantendo-se com um constante sorriso nos lábios, mesmo quando o correto seria manifestarem desagrado, mostram com isso que são rígidos, também. Não conseguem demonstrar os próprios sentimentos de acordo com o que exige a necessidade. Não querem desagradar aos outros, desagradando a si próprios. Mostram que não amadureceram da fase infantil. Sentem medo de romperem o vínculo afetivo com as outras pessoas como se estas fossem seus pais. Deixam-se levar por fantasias de que o desagrado é destrutivo das pessoas. Não conseguem encarar a realidade com o que esta tem de bom e de ruim, respondendo-a de maneira coerentemente adequada.


Os músculos são condicionantes físicos. Eles funcionam a partir da mente. A história de vida influencia na maneira como os músculos se comportam. A figura de um guerreiro, revestido de sua armadura da cabeça aos pés, mostra muito bem o que a musculatura rígida pode fazer com o corpo de um indivíduo. É verdade que a armadura protege. Mas, é verdade também que, além de proteger, a armadura dificulta a locomoção. Nas guerras, como as que existiam antigamente, até que se justificavam tais armaduras, com as quais os soldados revestiam o próprio corpo. Hoje, elas não encontram o menor sentido. No cotidiano hodierno da vida das pessoas, estas precisam mesmo é de muita agilidade, de muita flexibilidade, espontaneidade, rapidez nos movimentos corporais e nos pensamentos. Precisam perder o medo de lidar com a própria realidade de vida. Só assim, conseguem desenvolver suas múltiplas capacidades, encontrando formas harmoniosas de viver e de conviver, com coragem e criatividade para corresponderem aos múltiplos desafios, exigidos pelos circunstâncias que as envolve. 

Por José Morelli

Ouvir o silêncio

Sons e ruídos em excesso incomodam. Em algumas ocasiões o silêncio é recebido com alívio. Para se ouvir o silêncio é preciso entendê-lo não só como ausência de barulho. Ouvir o silêncio é reconhecê-lo naquilo que ele contém de cheio, de pleno. Em tudo e em todos sempre existe um lado silencioso. Temer ouvi-lo e enfrentá-lo é impedir-se de ver e de ver-se. 

A ansiedade de manter-se constantemente ocupado ou com os ouvidos ocupados é uma fuga de si mesmo. Proporcionar-se momentos de silêncio, aprendendo a ouvi-lo e entendendo o que ele esconde, dentro de si, é de fundamental importância, para o equilíbrio emocional e bom desenvolvimento das capacidades humanas.

Nossos ouvidos de gente possuem uma capacidade relativa para ouvir. Existem outras espécies animais cuja audição é bem mais apurada que a nossa. Mesmo assim, a poluição sonora com que convivemos, frequentemente, ultrapassa os limites de nossa capacidade de suportá-la. O excesso de ruídos sobrecarrega nosso sistema nervoso, podendo levá-lo ao estresse.

Há momentos em que o silêncio incomoda realmente. Porém, “fugir dele como o diabo da cruz”, não é uma boa idéia. Falar é bom, falar demais pode ser por medo de ouvir ou de ouvir-se. Manter o rádio ou a televisão ligada o dia inteiro, pode ser uma forma de não se permitir ouvir o silêncio.

As palavras falam e o silêncio também. Existem silêncios muito expressivos mesmo... falam alto, gritam forte nos ouvidos.  Bons entendedores são capazes de compreendê-los, em seus plenos significados. Dar provas de acolher alguém em seu silêncio é de um valor inestimável. Quem se percebe assim acolhido, sente-se mais encorajado a aceitar-se, superando seus medos.

Toda psicoterapia é feita de palavras e de silêncios. Ambos têm muito a revelar, tanto ao paciente como ao psicoterapeuta. Palavras e silêncios, interpretados e reinterpretados, têm o poder de mobilizar interiormente, constituindo-se num processo, capaz de desfazer fantasias e medos inconscientes. O tempo concorre também. Pouco a pouco, os resultados aparecem... e, com bastante consistência. O horizonte se amplia e a vida passa a oferecer mais e melhores oportunidades de realização pessoal. 

Por José Morelli

O poder da criança

Na medida em que a criança vai se desenvolvendo e descobrindo suas capacidades, vai, também, se percebendo como pode fazer uso das mesmas a seu favor, no sentido de que os outros a atendam em suas necessidades ou vontades. É importante que a criança se reconheça em si mesma, assim como é importante que ela reconheça o outro, não como extensão, prolongamento dela, mas como alguém distinto, separado dela. 

Num primeiro momento, a criança faz uso do choro para avisar a quem dela cuida, a fim de que possa atendê-la. Seus primeiros movimentos faciais e corporais ajudam-na a se expressar. Com eles, ela busca fazer-se entender, mesmo que de forma não muito clara, exigindo esforço do outro para que possa compreendê-la. Num segundo passo de seu desenvolvimento, a criança amadurece sua capacidade de comunicar-se através da fala.

É incrível observar como acontece esse processo de amadurecimento da comunicação oral/verbal da criança. A visão e a audição permitem que ela vá associando coisas e pessoas com os sons de palavras que as representem. No arquivozinho da memória vão se somando imagens visuais e sons diferenciados. Pouco a pouco, a partir da observação de como os mais velhos fazem, a criança passa a desenvolver a musculatura da boca para pronunciar vogais e sílabas.

O começo não é e não poderia ser perfeito. Quantas vezes, a criança faz os que já passaram por essa fase rirem da maneira como que ela consegue emitir sons, na tentativa legítima de se fazer entender e de pronunciar as primeiras palavras. Esse processo, pouco a pouco, vai permitindo o amadurecimento de seus mecanismos cerebrais de construção de conceitos e de emissão de sons vocais que os representem.


Associado ao poder da fala, a criança também ganha autonomia e poder, através de sua capacidade de se movimentar, exercendo seu direito de ir e vir, com o concurso de suas próprias pernas. Como lhe atrai amplos espaços, onde possa correr de um lado para o outro!... Na condição de principezinho ou de princesinha, com todo o poder que já sente que tem, ela vai passando a se considerar dona do pedaço, disputando poder com aqueles que, junto a ela, têm a tarefa de educá-la e de prepará-la para a vida, uma vez que, no futuro, o mundo não vai ser capaz de reconhecê-la, assim, tão poderosa.  

Por José Morelli

Blefar

É o mesmo que “iludir no jogo, apostando e/ou agindo como se estivesse com boas cartas na mão”. O dicionário do Aurélio apresenta, ainda, como sinônimos de blefar: “enganar, lograr” bem como o de “esconder uma situação precária”. Blefe (substantivo) é o ato ou efeito de blefar.

Mesmo que as cartas sejam exatamente aquelas que são e não outras, o jogador mais experiente, usando de malícia, pode fazer uso do recurso adicional de blefar, a fim de tirar as maiores vantagens com isso, desde que seu adversário, no jogo ou na vida, embarque em suas estratégias. Trata-se de uma questão de sagacidade, de inteligência e, sem dúvida, também de coragem para correr risco. Consolidando o engano, porém, nada mais restará ao perdedor senão lamentar por ter se deixado levar tão ingenuamente.

O jogo faz parte da vida e a vida, em si mesma, também não deixa de ser um imenso jogo. Por isso, do jogo, o verbo e seu substantivo passaram a retratar situações do dia-a-dia, com as quais todos nós seres humanos, temos a necessidade de aprender a lidar. Ao brincar com as crianças, os adultos, às vezes, fingem chorar, tentando enganá-las. As crianças aprendem logo com o que lhes ensinam os adultos, imitando-os no que estes fazem. Dois exemplos de frases, encontrados no dicionário, mostram como os adultos continuam blefando, pelo resto de suas vidas: “Não está nada bem de finanças, mas continua blefando em casa” e “Blefou a vigilância do hospital e saiu sem ter alta”.


Além do que já foi dito acima e que parece fácil de entender, é preciso acrescentar outro tipo de blefe de compreensão menos fácil, mas possível de acontecer também com relativa frequência, trata-se do blefe com sigo mesmo. Qualquer pessoa é passível de praticar esse tipo de auto-ilusão, não se dando conta de que está enganando a si mesma. Diante de certas questões em que podem existir comprometimentos graves dos próprios interesses, a consciência do indivíduo reconhece, imediatamente, apenas as razões que lhe parecem ser favoráveis, não conseguindo reconhecer aquelas que não são favoráveis ou que assim lhe parecem e que o levam a tomar decisões de forma unilateral. O indivíduo fica como que cego e surdo. Só depois, quando seu estado de ânimo se acalma é que consegue analisar, com mais objetividade, a situação em que se encontrava envolvido. Cai em si e se dá conta do tamanho de sua dificuldade em aceitar e entender a realidade, em sua maior abrangência.  

Por José Morelli

Psico-somático

O entrelaçamento entre o psíquico e o físico, entre a mente e o corpo, é um fato muitíssimas vezes constatado. Uma forma para nos aproximarmos do entendimento desse fenômeno de ação e reação entre corpo e espírito é através da analogia. A analogia é “o ponto de semelhança entre coisas diferentes”.

A ligação entre o psíquico e o físico pode ser comparada com a ação da luz do sol sobre a superfície das coisas. Segundo a física, na luz do sol, nessa claridade em que vivemos, estão todas as cores que compõem o arco-íris. Dependendo da composição química dos elementos que revestem as superfícies, a luz se reflete numa das cores, sendo as outras absorvidas. As cores que o objeto tem são aquelas que não vemos. Aquela que ele não tem é a cor que vemos.

É assim que acontece com a luz do sol. O que os olhos vêem é a cor refletida. As cores absorvida não são vistas. Os olhos têm todas as condições e sensibilidade para perceberem, fisicamente, os reflexos da luz através das cores. Da mesma forma que os olhos, o nosso corpo inteiro, em cada uma de suas partes, externas e internas, tem sensibilidade. Nesse sentido, o nosso corpo se assemelha à superfície das coisas.

A luz do sol e as cores que nela se encontram, representa o todo das situações, que cada um de nós se defronta em cada momento. Os fatos nos atingem em nosso ser inteiro. Os fatos têm, cada um, seu colorido próprio. Além das cores dominantes, existem muitos matizes. O colorido dos fatos são o que eles representam de bem e de mal, de justo e de injusto, de bonito e de feito, de recompensa e de castigo, de verdadeiro e de falso, de saudável e de doentio, de gostoso/prazeroso e de incômodo/aversivo, de atração e de repulsa, de alegria e de mágoa, de inveja, de ciúmes, etc. ...


Por sua vez, o corpo capta, absorvendo e refletindo tudo o que os fatos contêm. O coração tem sua sensibilidade para absorver e refletir do mesmo modo os rins, o fígado, as glândulas, as mãos, os pés, a cabeça e todos os órgãos e membros. Tudo é assimilado, negado ou afirmado, absorvido ou refletido.

Por José Morelli